Texto extraído do Jornal O Estado de São Paulo de hoje (04/05) de autoria do Senhor *Gaudêncio Torquato, jornalista,
professor titular da USP e consultor político e de comunicação.
twitter@gaudtorquato
O pequeno MC Pedrinho
está bombando nas redes sociais com Dom Dom Dom, música que faz referência a
sexo oral. (MCs são designados os cantores de funk, os "mestres de
cerimônias", responsáveis pela condução e ritmo da festa). O sucesso desse
menino de 11 anos deriva não só do fato de enveredar pelo gênero que anima
bailes das galeras jovens das periferias, mas pelo inusitado feito de fazer
ecoar, com seu timbre fino de voz, uma letra cujo fim do refrão é impublicável.
A dissonância que se poderia enxergar entre a idade do artista e a carga de
significados do funk pesadão parece proposital para chocar ouvidos menos
acostumados às nuances da linguagem desse gênero. Pedro Maia faz sucesso. Há
dias, outro menino, também de 11 anos, Bernardo Boldrini, foi assassinado pela
madrasta com uma injeção letal no braço esquerdo. Sobre o corpo depositado numa
cova foi jogada soda cáustica, para acelerar o processo de decomposição. Os
garotos, da mesma idade, de origens e classes sociais distintas - Pedrinho,
filho de uma doméstica; Bernardo, filho de médico - traduzem o espírito do
tempo em nossos trópicos.
O embalo do primeiro
se deve às redes sociais, que lhe proporcionaram mais de 1 milhão de acessos no
YouTube, canal aberto às invenções, ações espetaculares, performances curiosas,
movimentos escatológicos e assemelhados de tantos quantos intencionam sair de
casulos para adentrar os vãos do Estado-espetáculo. Seu funk, na esteira da
modalidade que a ginga carioca recriou nos morros para enaltecer comandos de
gangues, drogas e armas, não lembra em nada o swing que James Brown adotou, nos
idos de 1960, para tornar o estilo dançante. Mas o caráter desse ciclo não tão
heroico que estamos vivendo faz do menino Pedrinho uma celebridade, tirando-o
dos arredores da Vila Maria, onde mora, para ganhar os aplausos e a boa grana
do show business.
O saracoteio do
funqueiro mirim nas ondas da música erótica, letras sem sentido e batidas
rápidas, por uns considerada lixo eletrônico de apologia ao crime, se encaixa
na "maré do niilismo", que Ortega Y Gasset já vislumbrava em meados
da terceira década do século 20. Parafraseando o apocalíptico pensador
espanhol, para quem "sem um novo poder espiritual" será inevitável
uma catástrofe, esse tipo de manifestação cultural corrobora a sensação de que
o "imoralismo avança" puxando uma legião de pregadores da extrema
vulgaridade.
Sementes do declínio
moral se espalham nas searas dos costumes, na esteira do embrutecimento da vida
cotidiana, simbolizado por formas de comportamento antissocial, como uso de
drogas, criminalidade e violência. Os valores tradicionais fenecem. Os
conflitos se expandem. Encolhe-se o "capital social", conceito que,
na visão do cientista político Samuel Huntington, é a equação da confiança e do
respeito, dos direitos e do convívio harmonioso entre grupos.
Tal leitura, que se
aplica aos mais diferentes Estados democráticos, ganha ênfase por aqui em
função do poder corrosivo que, nos últimos tempos, devasta a paisagem
institucional. A política escancara uma torrente de escândalos. A gestão
pública perde eficácia. A dinâmica social puxa contingentes de baixo para morar
nos andares de cima da pirâmide, mas deixa para trás valores tradicionais que
formam a argamassa da cidadania, como solidariedade, respeito aos velhos e
crianças, lealdade, amor ao trabalho, culto à família, verdade, honestidade,
senso do dever. Muitas leis entram no lixo todos os dias. Dribles e firulas dão
curvas na estrada da ordem. A educação não prima em valorizar critérios que
poderiam ajudar os jovens a preservar o corpo moral.
No deserto dos
valores, o nivelamento cultural tende a se dar por baixo. Os comportamentos
obedecem à liturgia da mimese. Imitam-se gostos, adereços, gestos, danças,
roupas de atores e atrizes de novelas. Há propensão para um "fazer extravagante",
forma de chamar a atenção, algo como trejeitos e esgares que dão medo ao
próprio Drácula. No diapasão da arte musical, as variações melódicas ganham a
escala de uma "nota só". A frase gritada (ou urrada?) é melhor que o
texto cantado. A estética capilar, esquisita e policromática, abriga logotipos
de cabelos espetados com cola, indicação de desejo de exibir um
"diferencial de imagem". Esse palco leva as galeras à catarse. O
histerismo anima as festas.
Por isso mesmo,
Pedrinho está bombando. Sob os cuidados de um empresário que comanda seus
passos. Afinal, $$$$$ é o que interessa. O menino irá longe? A mãe quer ver o
rebento coberto de aplausos e de cofrinho cheio. Mas garante não gostar (?) que
ele cante o refrão pornográfico em sua frente. Já o Ministério Público (MP)
lembra que ele pode cantar o que quiser, sob endosso de uma especialista em
sexualidade, para quem "meninos na idade do Pedrinho já falam de sexo
entre si". E assim rola o show business.
Bernardo Boldrini, o
outro menino, era problemático. É o que se dizia dele. O pai não lhe dava
atenção. A mãe biológica, segundo a Polícia, se matou em 2010. A madrasta,
diz-se, estaria cobiçando a herança. Enganou o enteado levando-o para fazer uma
consulta com uma "mãe de santo". A linguagem do ritual é de arrepiar.
Santo, benzer, rezar. Palavras que expressam Hosana nas alturas para salvar o
menino. Que desfaçatez. Armava-se a trama do assassinato. Chama a atenção o
fato de o garoto ter pedido o apoio do MP para ser acolhido por outra família. Não
foi atendido. Tudo isso entra na arena da banalização da maldade, reforçada por
ações (inações) de órgãos de defesa da sociedade, governantes e representantes.
Como se explicam, por exemplo, os 3 mil casos de pessoas enterradas como
indigentes em São Paulo, apesar de portarem documento de identidade? Como se
explica o despacho de levas de haitianos para São Paulo e outras cidades, sob
decisão unilateral do governo do Acre? Onde estão os entes governativos?
O espírito do nosso tempo é de
trevas!
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