Fernando Gabeira, O Estado de S. Paulo
Mais
de 1 milhão de pessoas assinaram um manifesto contra Renan Calheiros na
presidência do Congresso Nacional. Movimentos como esse têm grande
valor simbólico. Equivalem às manifestações modernas em que se protesta
contra algo vergonhoso ou sanguinário com cartazes que dizem: “Não em
meu nome”.
São bons para mostrar que o País não é homogêneo e que
alguns governantes tomam atitudes francamente rejeitadas por milhares de
seus conterrâneos.
Em termos internacionais, isso é a notícia.
Calheiros passaria em branco se fosse apenas Calheiros com seu rebanho,
notas frias, bela amante e um lobista de empreiteira para pagar suas
contas. Mas é um presidente do Congresso rejeitado por milhões.
Uso
o plural porque o manifesto tem pouco mais de uma semana de vida e
muitos que rejeitam a presença dele ainda desconhecem sua existência ou
ainda hesitam em manifestar sua rejeição.
O manifesto vai
encontrar um poderoso muro de cinismo, com materiais impenetráveis,
entre eles a crença da esquerda de que os meios justificam os fins. Essa
camada é difícil de atravessar porque se mescla com uma vitimização
geral.
Na Venezuela, Hugo Chávez tenta convencer as pessoas de que
o capitalismo e o imperialismo são uma boa razão histórica para que um
ato nobre não coincida com sua legalidade.
Os textos de Lenin
autorizam essa interpretação. Não creio que o PMDB precise de alguma
teoria, mas Calheiros mencionou os objetivos nacionais, aos quais a
ética deve ser subordinada. Estrangularemos e saquearemos, pois, em nome
dos objetivos nacionais, que não foram explicitados porque servem
melhor assim, numa forma altamente abstrata.
Sarney disse, em seu
discurso, que a paixão pela política e pelo bem comum é maior que a
paixão pela vida. Em outras palavras, ele seria capaz de morrer pelo bem
comum.
Imagens fora do lugar. Sarney poderia ter dito isso
durante a ditadura militar, quando essa frase altissonante poderia ser
posta à prova.
Sarney sabe muito bem que hoje, se quiser discutir
questões de vida ou morte, deve falar com os médicos no Instituto do
Coração ou outros especialistas que cuidam de sua saúde. Passou o tempo
do heroísmo, porque, como dizia Brecht, o País já não necessita de
heróis.
Outro componente do cinismo é supor que a maioria
eleitoral dá direitos ilimitados aos ungidos pelo voto popular. Daí em
diante é seguir em frente com a frase de Disraeli nos lábios: “Nunca se
queixe, nunca se explique, nunca se desculpe”.
Há um amálgama de
Maquiavel, Disraeli, Max Weber mal digerido, pois o sociólogo alemão
considerava uma ética totalitária a pura expressão os meios justificam os fins.
No fundo mesmo, a substância mais gelatinosa e agregadora da camada de
cinismo é o desprezo até pela racionalização. Os fins são a riqueza
pessoal, alguns imóveis em Miami, uma fazenda de gado.
Como dizia o
poeta, os amigos não avisaram que havia uma revolução. E ela
transformou tão radicalmente as relações que frases como a de Disraeli,
preferidas como néctar da sabedoria política, se tornam cômicas e
ingênuas.
Aos jovens de hoje basta dar alguns toques no computador
para saberem, em minutos, tudo o que existe publicado sobre os
políticos. Com uma câmera de US$ 400 é possível filmá-los com uma
definição quatro vezes maior que o HD de seus televisores. O Congresso,
em tempos como o nosso, está na vitrine, como aquelas mulheres do
Distrito da Luz Vermelha, em Amsterdã.
Não estou comparando os
políticos às prostitutas. Seria injusto para com certos políticos e
prostitutas. Digo apenas que ambos estão expostos, elas física, eles
virtualmente. Com a bunda de fora, muitos ainda não se deram conta de
que estão na vitrine. Não pensam no futuro, na rejeição popular, nos
problemas que trazem para suas próprias famílias.
Alguns deles, em
breve, não poderão frequentar lugares públicos nas metrópoles
brasileiras. Terão de viver uma realidade separada. Seus jatinhos
decolam e aterrissam discretamente, seus percursos urbanos serão feitos
de helicóptero.
Tornaram-se pássaros e vão flutuar na atmosfera por algum tempo, até que uma tempestade os jogue no chão enlameado.
Imagino
o que pensam: nada disso nos derrota nas eleições, temos maioria.
Prosseguiremos assim porque, com raros incidentes, sobrevivemos bem ao
longo da década.
O que pode acontecer quando um Congresso se
degrada ostensivamente em plena era da informação? A escolha de
Calheiros e Alves para a direção das Casas do Congresso abre nova etapa,
atenuada pelas festas do carnaval.
Já passamos por fases
difíceis. Ouço algumas vozes de desespero. Mas a experiência mostrou
que, nesses momentos, o importante é não desesperar, não jogar fora o
Brasil com a água do banho. Pelo menos 1 milhão de pessoas pensam como
nós sobre a escolha de Renan Calheiros. E elas dizem claramente com a
assinatura do manifesto: não em meu nome.
Há um Brasil que resiste
e nele há espaço e gente suficiente para não nos sentirmos sós e
pacientemente encontrarmos uma saída para o impasse.
Alguns novos
países, o nosso inclusive, talvez nem tivessem 1 milhão de pessoas
quando iniciaram sua trajetória para a independência. Nem havia
internet.
Os brasileiros fora do País, que são quase 2 milhões,
também podem ser acionados e, de lá, contribuir na campanha contra
Renan. Com tantas conexões e a inteligência coletiva em cena, impossível
não encontrar os meios de abalar um jovem coronel incrustado no topo de
uma instituição nacional.
É um problema novo que vai roubar tempo
e energia, mas não a esperança. Vamos a ele, sem desânimo e, se
possível, com algum humor.
Depois de eleito, Renan aparece numa
foto, em Brasília, com uma espada apontada para seu pescoço. É apenas um
efeito visual, desses que acontecem em solenidades militares. Do jeito
que olhava a espada, imagino que comece a perceber a trapalhada em que
se meteu. Precisamos ajudá-lo a compreender.
No tempo em que eu estava lá, fui o mais explícito possível: se entrega, Corisco.
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